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Ser competente, ser sabido, ser feliz: para que estudamos, afinal?


Ser competente, ser sabido, ser feliz: para que estudamos, afinal?


A expressão “ensino por habilidades” ou “aprendizagem por habilidades” tem caído na boca do povo. Cada vez é mais comum conhecermos instituições de educação, formal ou informal, que afirmam trabalhar para desenvolver habilidades. Não é de se espantar que isso esteja em alta. Os documentos orientadores da educação básica no Brasil passaram a contar com a BNCC, a Base Nacional Comum Curricular, aprovada em 2017. Desde então, habilidade e competência passa a ser objetivo curricular para todas as escolas do país, apesar de haver um tempo de “carência” para que elas se adequem, claro.

A mania pegou também em outras áreas. O pessoal do RH e do treinamento corporativo adorou a ideia e passou a falar também sobre a importância de desenvolver habilidades, contratar por competências e assim por diante.


Mas, está claro para nós, meros mortais que navegamos pelo mundo, o que isso significa?


Eu, professora há 13 anos, estou convencida de que não está claro. E faz parte: o próprio movimento de abrir a cabeça para expandir as concepções de educação, ensino e aprendizagem é uma habilidade que não desenvolvemos. Pelo menos não na escola tradicional. Para justificar essa minha tese, gostaria de contar um pouco sobre quem eu sou.

Já aos 5 anos de idade eu sabia que seria professora. No primeiro dia da escolinha eu corrigi a gramática de um colega e reclamei com a professora que eu queria aprender e não brincar. Todos deviam me odiar e com razão! Naquela hora, que tal seria se a professora tivesse me explicado que brincar também é aprender? Que precisamos da pausa para produzir? Que ritmo, sem pausa, não existe? Bem, aos 5 anos eu já era workaholic. E não me orgulho disso, não. De lá até a primeira aprovação no vestibular, que aconteceu aos 16 anos quando passei direto na FUVEST em 8o lugar, a minha trajetória foi bem linear: primeira da classe, tipo nerd mesmo. Dominava muito bem os conteúdos. Veja: eu gabaritei a prova de física da segunda fase (e eu sou professora de português!).

Para mim, decorar e reproduzir conteúdos sempre foi muito fácil. Claro: eu passei mais de uma década na escola fazendo isso. Eram essas duas atividades que repetíamos, sempre, independente do tipo de conteúdo que estivéssemos aprendendo. Da fórmula de báskhara, passando pelo período composto por subordinação, balanceamento químico e todas as escolas literárias, a escola era sobre decorar e reproduzir. Ta aí. Isso são as duas habilidades que a maioria de nós aprendeu na escola. Vou contar um causo que serve de exemplo.

No primeiro colegial (palavra que já demonstra que estudei nos anos 1990 e 2000), tive um professor de filosofia que avaliava a gente assim: ele xerocava a página do livro (como eu explico para alguém da geração Z o que é xerocar?), passava branquinho em cima de algumas palavras e conceitos aleatoriamente, xerocava de novo essa página e isso era a prova. A gente tinha que literalmente decorar as páginas do livro para então reproduzi-las na prova. Por conta disso eu sei até hoje que a mãe do Sócrates chamava Fenareta e era parteira. Juro que isso caiu na prova: o nome da mãe do Sócrates. Agora, as ideias dele e as conexões delas com minha vida prática só fui aprender de verdade aos 30 anos, quando ganhei um livro muito bacana do meu marido chamado “Manual de sobrevivência filosófico”.



Diante de várias inquietações minha frente à chegada dos 30 anos em plena pandemia, ele me presenteou com livros de filosofia. Me conhece, sabe que sou nerd! Bem, a abordagem desse livro é prática. Está angustiado? Tá aqui o que pensaram os filósofos sobre isso. Tem medo de morrer? Toda uma lista de filósofas e filósofos tiveram também! Não entende o que é o amor? Sem problemas, podemos te ajudar!


Diante dessa obra simples e magnífica, entendi pela primeira vez para que servia a filosofia: era para enfrentarmos os males do mundo, a angústia e a beleza de sermos seres humanos. E o conhecimento filosófico nos serve de sabedoria para fazermos escolhas, todos os dias. Habilidades como distinguir entre o certo e o errado, escolher o que é bom para mim, aceitar o que não posso mudar e me interessar por aquilo que é complexo poderiam ter sido desenvolvidas, em mim, pelo meu professor de filosofia. Em vez disso, aprendi o nome da mãe do Sócrates e gravei até hoje.

Mas, se na escola nos limitamos a decorar e reproduzir, como poderemos chegar a distinguir, escolher, aceitar e desenvolver interesse? Todos esses verbos de ação são procedimentos cognitivos que precisamos aprender a fazer. Nem todos aprendemos copiando. Na verdade, os especialistas em educação e em neurociência aplicada à educação discutem bastante sobre como ensinar e aprender cada tipo de procedimento cognitivo. As ideias variam bastante.

Um outro livro que me ajudou muito a entender isso na prática, já professora, foi “O ensino que funciona”, do Robert Marzano e companhia.



Quando ganhei esse livro de presente, do meu ex-chefe, ex-sócio e atual-amigo-muito-querido Jefferson Santos, fiquei muito entusiasmada com a maneira prática e científica com que o livro explica que tipo de tarefas e exercícios ajudam os estudantes a aprenderem cada tipo de conhecimento. Por exemplo: se preciso aprender uma sequência de fatos encadeados, melhor desenhar uma linha do tempo. Agora, se preciso aprender detalhes a respeito de um conceito, apresentar um glossário com os termos mais difíceis antes pode ser uma boa. Para compreender conceitos novos, posso criar representações não-verbais dele num caderninho. Ideias simples, práticas, que desenvolvem habilidades e vão além do decorar e reproduzir.

Mas, por que a gente não aprende assim na escola? Outra questão: será que, magicamente, chegando a BNCC, todas as escolas vão ensinar desse jeito, com foco em habilidades?

Vamos começar pela primeira pergunta. A escola do século XXI ainda reflete as fábricas do século XIX. Somos obcecados pelo produto final, que sai lá na ponta da linha de produção. E ele é uma nota 10, na escola. De preferência em uma prova de alternativa. Qual o caminho mais curto, eficiente e eficaz, para entregarmos esse produto? Definitivamente é decorando e reproduzindo. Ninguém perguntou nada sobre o caminho mais proveitoso, divertido, interessante e que causa impactos duradouros na nossa mente e na nossa vida.

Ninguém pareceu se perguntar também quais os efeitos colaterais desse caminho, veloz e direto ao resultado, na nossa saúde emocional. Ansiosos, dependentes de ansiolíticos e antidepressivos, viciados em trabalho e desesperançosos, os millennials, os boomers, a geração Z e todos os que sobrevivem à pandemia experimentam esses reflexos diariamente. Temos pavor de errar. Nos sentimos impostores na nossa própria pele.

Sentimos vergonha de expor nossas ideias. Temos aversão a falar outras línguas na frente dos outros. Sentimos sintomas físicos. Choramos. Nos estressamos. Infartamos aos 35 anos. Tudo isso para termos um boletim cravejado de notas 10, o equivalente aos boletos todos pagos e um holerite bem gordinho na vida adulta.


Se o salário e o status são importantes para vivermos na nossa sociedade como ela é, eles definitivamente não compram nosso tempo e dificilmente nos compram a saúde de volta, depois que ela foi perdida para o trabalho. Ponderar o peso do trabalho na vida, equilibrar todas as atividades, fazer escolhas saudáveis, saber se autocuidar. Eis mais uma lista de habilidades socioemocionais que poderíamos ter aprendido na escola, mas não aprendemos.


Agora vamos à segunda pergunta: será que magicamente todas as escolas vão aderir a essa mentalidade? Claro que não. Até porque, a medida final, as notas, as provas, os vestibulares, continuam ainda vinculados a conteúdos decorados e reproduzidos. Mas isso tem mudado. Novas tendências em educação têm convidado a neurociência para dentro da sala de aula, trazendo evidências de que uma educação integral, que leva em conta não só aspectos cognitivos, mas motores e emocionais é muito importante.


Para que isso se consolide em toda a sociedade, é preciso um esforço conjunto. Não adianta a gente esperar que as escolas resolvam o problema sozinhos. Se nossos filhos chegarem em casa e tomarem bronca porque tiraram nota vermelha, a despeito de terem participado das aulas, se desafiado e criado coisas incríveis, não conseguiremos fazer com que eles aprendam outras habilidades importantes além de decorar e reproduzir.


Se nós não abaixarmos a régua que nos autopune quando erramos, buscando desenvolver uma mentalidade de crescimento verdadeira, também não conseguiremos abrir nossa mente para, antes, identificar o que não sabemos com humildade e sem medo para, depois, desenharmos nossa própria trilha de aprendizagem.


Se o mundo digital é tão customizável e tão personalizável, precisamos, então, aprender a customizar. Isso começa conosco identificando nossas lacunas para decidir quais desafios queremos enfrentar a seguir. Mas, se temos tanto medo de errar, conseguiremos fazer isso de verdade?


Enquanto estivermos perdidos, sem saber para onde ir, qualquer caminho resolve. Mas qualquer caminho vale a pena? Sem o desejo genuíno de aprendemos a olhar para dentro com honestidade, em busca de lacunas, e olhar para fora com compaixão, em busca de oportunidades e empatia, talvez esse desejo por transformar todo o ensino em ensino por habilidades seja apenas mais uma maneira de maquiar aquilo que sempre existiu. Mais do mesmo, mas com uma roupa mais bonita.


Por isso, afirmo que não aprendemos essa habilidade de abrir a cabeça para o novo. Mas a notícia que tenho é boa: toda habilidade pode ser aprendida. Durante a quarentena, consegui ensinar minha gata, já adulta, a responder pelo nome dela, desmentindo mitos populares de que bichos mais velhos não aprendem. Aprendem sim, com a motivação e a estratégia correta! E nós também podemos aprender. Qualquer coisa. Com prática, motivação e, sempre, um olhar carinhoso para nós mesmos e nossa trilha individual e única.

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